Demarcação de área Quilombola em Itacoatiara (AM): entenda impasse entre moradores contra o processo

Bruno Pacheco – Da Redação O Login da Notícia

ITACOATIARA (AM) – A demarcação de uma área reivindicada como território Quilombola, na zona rural do município de Itacoatiara (a 270 quilômetros de Manaus), no Amazonas, tem gerado impasse entre moradores que são contra o processo. A cerca de oito quilômetros da sede da cidade, a comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa foi certificada como remanescente de Quilombo pela Fundação Cultural Palmares, em 2014, mas o processo de titulação ainda não foi concluído.

Quilombos são comunidades formadas por descendentes de africanos que foram escravizados no período colonial e pós-colonial no Brasil, e surgiram como resultado da resistência à escravidão, após fugirem das fazendas e se estabelecerem em locais isolados, muitas vezes em áreas de difícil acesso. Na Sagrado Coração, cuja região fica dentro de uma Área de Preservação Permanente (APA), oito famílias se identificam como Quilombolas, enquanto 127 desaprovam o reconhecimento do território.

Na comunidade, que está entre as nove do Amazonas que conseguiram a certificação da Fundação Palmares, após um estudo de dois pesquisadores, os trabalhos de delimitação voltaram a ser realizados na semana passada, com técnicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) realizando in loco até esta quinta-feira, 8, um levantamento social e ambiental para criação do quilombo. A visita, contudo, desagrada os moradores que não aceitam a conclusão do processo.

Por conta disso, alguns representantes da comunidade foram até a Câmara Municipal de Itacoatiara (CMI) nessa terça-feira, 6, participar de uma reunião com os vereadores da cidade e manifestar a insatisfação com o processo de demarcar o território. Os moradores alegam estarem sendo pressionados para assinar o documento que reconhece o Quilombo e temem ser expulsos da região com o andamento da medida.

Jomara Sá, de camisa amarela, na reunião com o presidente da Câmara de Itacoatiara, Júnior Galvão (PSC) – (Bruno Pacheco/O Login da Notícia)

“São 127 famílias que estão sendo prejudicadas nessa questão de demarcação. Estamos contra pessoas que levantam ‘um lado apenas’ da bandeira, não dando oportunidade para essas famílias. […] Querem, porque querem, que a gente aceite. E estão retornando para as casas para que a gente assine o documento confirmando esse estudo”, afirmou Jomara Sá, presidente da comunidade do Lago de Serpa.

O que diz o Incra

O Incra, por outro lado, nega a pressão para que as famílias se identifiquem como Quilombolas e afirma que o órgão tem trabalhado de forma técnica com a comunidade informando sobre os benefícios do território obter a titulação. O superintendente do instituto, Denis da Silva Pereira, afirma que o Incra cumpre uma missão constitucional. “A Constituição, no artigo 78, prevê que os remanescentes de Quilombo têm direito à territorialidade”, pontuou.

“Cada família vai dizer se quer ou não ser definida como tal. É claro que acharíamos bom que a maioria quisesse, pois quando a gente titula um território Quilombola, garantimos ganhos ambientais, ganhos de ordem social e econômica, e se adequa à lógica planetária de conservação ambiental e de valorização das culturas e das etnias da Amazônia”, pontuou.

“Nós estamos cumprindo a legislação, fazendo um trabalho técnico, mas compreendendo a importância que tem para a Amazônia a demarcação desses territórios. Quanto a história de expulsão, não é verdade. As comunidades tradicionais são respeitadas e reconhecidas. Todavia, é evidente que, nesses processos de demarcação, você tem o poder econômico agindo em certos grupos da comunidade”, disse Pereira.

Ainda de acordo com o superintendente do Incra, os dados levantados pelo instituto no Lago de Serpa estarão em relatório antropológico social e ambiental, que está previsto para ser entregue em setembro deste ano, com todo o processo finalizado até dezembro de 2022, e o início da titulação do Quilombo em janeiro de 2023. Denis Pereira reforça ainda que a presença da Polícia Federal na região é para garantir a paz e a segurança dos servidores do órgão.

“Nesse período, é dado todo o direito a quem discorda da criação do Quilombo a recorrer ao Incra regional e nacional, e à Justiça. Todo direito ao contraditório é garantido. O Incra não está com violência, pelo contrário, a presença da Polícia Federal foi devido a alguns episódios que podiam gerar violência e colocar em risco os nossos servidores”, salientou.

“Nós achamos importante que as pessoas se cadastrem como Quilombolas, porque isso fortalece a luta deles. Mas, evidentemente, vamos respeitar aqueles que não se definirem e isso não quer dizer que, por isso, eles vão ser expulsos da terra. E mesmo as propriedades improdutivas, que estão lá para especulação imobiliária, é garantido um pagamento por todos os bens daqueles que vão sair”, enfatizou Pereira, pontuando ainda que moradores precisam ter o título do território, reconhecido pelo Incra.

Origem

A Comunidade do Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa foi certificada como Quilombola, em 2014, após um estudo realizado pelos pesquisadores Claudemilson Nonato Santos de Oliveira e Thyrso Muñoz Araújo, responsáveis por produzir um dossiê e enviar tal documento à Fundação Palmares. A origem ancestral da comunidade, segundo o jornal A Crítica, remonta a metade do século XIX, em meados de 1855, quando a escravidão no Brasil chegava ao fim.

Na época, Dom Pedro II havia proibido a chegada de navios negreiros ao País, em meio à pressão da coroa britânica. Apesar disso, contrabandistas ainda conseguiram furar o bloqueio nacional com o transporte de escravizados. Segundo o estudo dos pesquisadores, nesse período, Itacoatiara abrigou alguns dessas pessoas escravizadas que trabalhavam em serraria, olaria e carpintaria, entre outras coisas, em uma colônia na região que durou até 1860.

A pesquisa indica que o local onde essas pessoas moravam é hoje o atual bairro da Colônia, na cidade de Itacoatiara. Com uma crise financeira que atingiu a cidade na época, os negros migraram para o Lago de Serpa e fundaram a comunidade no Lago de Serpa, conforme o estudo. Os dados foram apresentados à Fundação Palmares, que certificou a região como remanescente de Quilombo em 2014.

‘Não somos contra nenhuma etnia’

João Ferreira do Nascimento, de 79 anos, é considerado o morador mais antigo do Lago de Serpa (Bruno Pacheco/O Login da Notícia)

Se por um lado, existem moradores a favor do Quilombo, do outro, produtores rurais e pecuaristas, contudo, alegam que a existência na região é uma invenção e uma história mal contada. O pescador João Ferreira do Nascimento, de 79 anos, considerado o morador mais antigo do Lago de Serpa, afirma que nunca ouviu falar de quilombolas na região e que não aceita ser reconhecido por algo que não é.

“Sou nascido e criado no Lago de Serpa e nunca ouvi nem falar sobre essa família dos quilombos. E eu não vou me considerar Quilombola, porque nem meu pai não e minha mãe eram. Inventaram isso agora e não aceito uma coisa que não sou”, afirmou João Ferreira do Nascimento, de 79 anos, considerado o morador mais antigo do Lago de Serpa.

João Ferreira foi um dos moradores do Lago de Serpa que participaram da reunião na Câmara de Itacoatiara

Em meio ao processo de demarcação, Jomara Sá, presidente da comunidade, afirma também que os moradores estão estressados e apreensivos com o andamento da medida. Ao Login, Jomara pontua que os produtores e pecuaristas querem apenas continuar em paz e em seus respectivos territórios.

“Nós, as 127 famílias, não somos contra nenhuma etnia, só queremos que cada um fique ‘no seu quadrado’ e cuide da sua vida. As pessoas estão esgotadas. Imagine eu chegar na tua casa e dizer que você tem que sair, porque ela é de tal etnia. Quem critica, é porque não está passando por isso, mas se um dia passar, vai ver a situação”, frisou.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

YouTube
YouTube
Instagram
WhatsApp
error: Você não tem permissão para copiar o conteúdo desta página, obrigado!!! You do not have permission to copy the content of this page, thank you!!